sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Loucos brincando de deuses ou seres conscientes? - Diálogo com Marco Bastos

Despiciendo falar que a época atual é uma incontestada revolução. As investigações científicas realçam levando diversas instituições anteriormente consideradas sólidas, tais como o Estado, a família e a propriedade a arquearem-se frente ao novel conceito de dignidade da pessoa humana, princípio este categoricamente exaltado pelo legislador no inc. III do art. 1º da Constituição Federal da República Federativa Brasileira de 1988. Consequentemente, indaga-se no rastro lampadejante deste princípio, frente às novas situações impostas pela ciência, sobre a necessidade de trasladar os desenlaces humanos e as técnicas científicas em normas jurídicas.

Ressalto, por necessário à justificativa deste texto, que durante a última semana, pelo menos uma vez ao dia, li a crônica A caminho das estrelas, de Marco Bastos. Pensador ético. Da beleza da forma, tônica dos seus trabalhos, deleito-me com o rico conteúdo temático, porque me interessam, por demais, as aventuras da mente humana pelas sendas do saber! Leio suas palavras e busco-lhes sentidos diversificados: "Pela potencialidade dos malefícios urge que se desenvolva uma 'ética' para a exploração do espaço. Que o homem não despreze e nem degrade a Terra, único habitat da Humanidade no Universo, e que ninguém se sobreponha aos seus irmãos por ser capaz de alçar vôos siderais." Eloquente e necessário clamor! Diversas questões humanísticas destacadas, no afã de provocar a reflexão dos leitores, por inúmeros caminhos, para além dos siderais.

Ab initio, a fala em destaque lembra-me minhas Dissertação de Mestrado (1996/1999) e Tese de Doutorado (2001/2005), nas quais analiso os efeitos ético-jurídicos da Revolução Biotecnológica. O embrião desta odisséia intelectual, desafio da minha vida acadêmica, foi Monografia de Final de Curso escrita à época do Bacharelado em Direito, em 1994/1995. Estudo contínuo, até hoje, nos quais destaco os atos dos cientistas que desbravam os mistérios do mundo genético e, nesta busca desenfreada, seu anseio por igualar-se aos místicos e imortais heróis da quimera humana. Deuses em ascensão (?) Pouco importam às minhas inquirições, dados subjetivos, a não ser para ilustração do meu pensamento. A voz de Marco Bastos sibila ao mesmo diapasão dos meus estudos, através dos quais fixo-me nas ações objetivamente consideradas, que dão nascimento às responsabilidades individual e social por parte da comunidade científica e social, envolvidas com a nova realidade.

O título desta crônica relembra a obra "Brincando de Deus: a engenharia genética e a manipulação da vida", escrita pela jornalista June Goodfield na década de 70, na qual a escritora sugere que os cientistas envolvidos com as manipulações genéticas estariam brincando de deus. Trazendo o eco deste temor para a área do conhecimento, por demais interessante, destacada por Marco Bastos - o espaço sideral - impossível compactuar que tudo seja fruto da irresponsabilidade ou do delírio humano, pois através das novas descobertas o cientista da era contemporânea volta-se para a melhoria das condições de vida no Planeta Terra. Na área da biotecnologia, essas intenções verificam-se através das tecnologias introduzidas na indústria de produtos de fármacos, vacinas e enzimas; na obtenção de plantas resistentes a herbicidas e pragas; no melhor aproveitamento dos recursos naturais não-renováveis, ou mesmo na pesquisa acadêmica básica, a qual provê a pesquisa aplicada de subsídios operacionais em áreas que são fundamentalmente science intensive. Marco Bastos, por seu lado, pergunta e responde: "Que benefícios (indiretos??) estariam sendo obtidos com os programas espaciais para justificar tais aplicações de recursos? E me respondo: desenvolvimento da ciência e da engenharia, da eletrônica, dos combustíveis, dos materiais, da medicina (espacial?), e milhares de novas conquistas tecnológicas que se incorporam a outros produtos, e que na nossa fome consumista utilizamos em nosso dia-a-dia: - foguetes, eletrodomésticos, aviões, automóveis, celulares, GPS´s, robôs, equipamentos médicos e cirúrgicos, computadores e toda a quinquilharia dos apetrechos da modernidade." Depreende-se, portanto, que não trafegam tão somente pela senda do inútil as investigações científicas nas duas áreas em destaque neste texto.

Por todas situações inéditas surgidas em particular ao final da década de 60, percebe Robert Mallet - um grande poeta - a importância da revolução científica e, por compreender a gravidade e a novidade dos problemas concernentes ao homem e também o seu caráter mutável, funda em Sorbone o Movimento Universal da Responsabilidade Científica, com a preocupação de analisar as novas indagações. Há de ser ressaltada, neste momento - e com aplausos - a função/missão do poeta atento aos fatos sociais da sua época e as consequentes responsabilidades.

Diversos os tópicos em estudo na contemporaneidade, que pela natureza meramente provocadora desta crônica faz-se impossível serem trazidos à tona com a devida profundeza que merecem. Alguns revestem-se de importância crucial para os dias atuais, enquanto outros são questões de importância perene, ponderados e discutidos pelos seres humanos desde os remotos tempos em que o indivíduo, pela primeira vez, despertava para o pensamento consciente e crítico. A universalidade dessas questões é uma consequência histórica da rede mundial de relações condizentes à tecnologia e à economia, que geram equivalentes políticos, éticos, jurídicos e religiosos.

Marco Bastos, preocupado pela carência do ser humano em entregar-se aos devaneios tecnológicos e sociais, vaticina sobre o perigo do Poder Humano quando voltado este contra/a favor (quem saberá?) do próprio ser humano. Em realidade, os detentores do poder são indivíduos que "[...] administram tão bem os seus negócios e que sob a égide da 'flâmula sideral' imobilizam os rebeldes, os críticos, os místicos e os crédulos com objetivos tão inocentes através dos quais dominam toda a humanidade." Estas palavras sugerem pensamentos esteados na probidade e honradez, porque a verdade é que não se pode ignorar que esteja o incremento da nova ciência - como saber - desgarrado da função que lhe foi outorgada durante toda a história da Humanidade - a de ser incorporado nas consciências, nas mentes e nas vidas humanas. Por demais infeliz, mas impossível de conter, o novo saber científico faz ouvir seus primeiros vagidos logo nos depósitos de bancos de dados e são manipulados de acordo com os meios e segundo as decisões das grandes potências.

Pueril anseio - contudo - aquele que se propõe estancar o curso do conhecimento humano, que chegado a um determinado estágio cavalga a passos largos para a frente. Grave retrocesso seria proibir a priori, mas uma indistinta permissividade poderá dar origem a prejuízos morais e sociais indeléveis e irressarcíveis. A aventura técnico-científica comporta riscos, suscita medos e insegurança, mas deve-se sempre avançar pelo caminho do risco e da aventura assumidos com o sentido de responsabilidade e do valor do ser humano. Escudam-se os cientistas na relação risco-benefício, para indicar o permissível nas experimentações perigosas, afirmando que estas devem ser levadas a termo quando os possíveis benefícios para a Humanidade sejam superiores aos riscos. Sob o ponto de vista ético, não há como ser diferente. A raça humana existe como espécie destacada por volta de dois milhões de anos e a civilização iniciou-se cerca de dez mil anos atrás. Desde então, seu desenvolvimento aumenta gradativa e regularmente. E, nesta seara, é de sabença, para que a humanidade persista por mais um milhão de anos é necessário ousar ir aonde ninguém jamais foi. Em todos os sentidos. Relevante que, pelo menos, se modifiquem atitudes e, em particular, promova-se o aprimoramento da vida intelectual, que permitirá alçar instâncias outras do conhecimento necessário à manutenção da Vida no Universo.

Em meio a tantos paradoxos, por insuficiência da Ética, impõe-se o Direito, conjunto de princípios e regras reguladoras da conduta humana, frente às novidades apresentadas pela Nova Ciência, numa visão que engloba o resultado presente e futuro na preservação da dignidade humana.

É inegável a singularidade das novas situações, mas nem por isso é proveitoso dramatizá-las se for feito, meramente, pelo impulso viciado que se tem de entrega a devaneios futurísticos, frutos de fértil imaginação. Isso não significa falta de receio ao desmedido poder alcançado pelo ser humano diante dos fatos da vida, nem insciência da situação no campo da responsabilidade - mesmo porque não é possível separar o ato humano livre e responsável do juízo ético e, por isso, da responsabilidade, pois todo ato livre tem um conteúdo - mas é apenas o reconhecimento que se deve fazer da importância das novas descobertas na melhoria da condição humana. Perda de tempo, nas circunstâncias atuais, lucubrar sobre até onde podem chegar os cientistas; sendo preferível, por eficaz e eficiente, indagar até onde os juristas, inseridos em determinado contexto social, devem chegar.

Nos campos da Ciência não pode o Direito prescindir de determinados princípios éticos, entre estes: o respeito à dignidade do ser humano em todas as etapas do seu desenvolvimento; a proibição de efetuar aplicações das novas descobertas contrárias aos valores fundamentais da Humanidade; o acesso equitativo aos benefícios derivados das ciências - em quaisquer esferas; a obrigação dos Estados de respeitar e não pôr em perigo a biodiversidade, como foi ratificado solenemente no Tratado sobre Diversidade Biológica subscrito no Rio de Janeiro, em 22 de maio de 1992; e o princípio de que o ser humano não deve ser objeto de manipulação social, científica, política, ética, jurídica e religiosa.

Conclusões definitivas seriam inconsequentes, ao momento. No entanto, percebe-se tratar de temas instigantes, aptos à pesquisa com viés inovador e diversificado, que proporcione desbravamento científico por espaços que se apresentarão bastante controversos no terceiro milênio. É necessário mensurar os poderes humanos, para medir suas consequências, fortificar as consequências felizes e limitar as consequências perigosas.

Rio de Janeiro, 3 de setembro de 2010 - 18h14
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz

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